O defensor público Fernando Soubhia destacou em entrevista ao que o não cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que garante direitos básicos aos menores de idade, é o que faz com que jovens sejam cooptados por facção criminosas. Soubhia também defendeu o uso de câmeras nas fardas de policiais para evitar abusos.
Ao contrário do discurso de políticos conservadores, que culpam o ECA pela inclusão de jovens no crime organizado, Soubhia diz que as facções criminosas se aproveitam de falhas estruturais do Estado para cooptar adolescentes.
Segundo ele, os Centros de Atendimento Socioeducativo são um dos ambientes preferidos pelas facções para fazer o recrutamento.
Ele também apontou a falta de investimento para promover a reintegração dos jovens segregados. “Se as exigências da Constituição e do ECA fossem cumpridas [escolarização, profissionalização, atividades culturais, esportivas e de lazer] talvez houvesse uma chance para se falar em recuperação”
Sobre os trabalhos da Defensoria Pública em relação ao aumento de mortes de jovens e ocorrências policiais, que envolvem mortes de adolescentes em trocas de tiros, Fernando pontuou que a Defensoria Pública é uma árdua defensora do uso de câmeras corporais por membros das forças policiais. “Essas ‘bodycams’ permitiriam avaliar com maior propriedade as mortes decorrentes de intervenção policial e, por outro lado, ampararia as afirmações das forças policiais no sentido de que a ação foi justificada.”
Confira abaixo a entrevista na íntegra com o defensor público, Fernando Soubhia, formado em Direito com especialização em Direito Penal e Processual Penal pela Pontífica Universidade Católica (PUC-SP) e mestre em Criminologia e Sistema de Justiça pela University of London
VGN – Em Mato Grosso, quais as dificuldades enfrentadas pelos defensores para promover e defender os direitos das crianças e dos adolescentes?
Fernando Soubhia – A Constituição Federal estabelece que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Ocorre que garantir todos esses direitos custa caro e o poder público inevitavelmente fará escolhas para utilização dos recursos públicos.
Nessas escolhas, direitos serão preteridos ou violados diretamente. Por isso, diariamente recebemos pessoas na Defensoria Pública em busca de vagas escolares ou creches próximas de suas residências ou garantia de transporte gratuito, pessoas em busca de tratamento médico hospitalar que lhes fora negado na rede pública, crianças e adolescentes em situação de risco diante da conduta dos pais ou guardiães, crianças e adolescentes em situação de miserabilidade com necessidade de medidas de proteção, etc.
A dificuldade, acredito eu, está em buscar soluções e meta-jurídicas para todos esses problemas diante do famoso cobertor curto.
VGN – Como a Defensoria pública atua para aplicar as medidas socioeducativas aos adolescentes infratores de acordo com o ECA?
Fernando Soubhia – Uma vez reconhecida a prática de um ato infracional pelo adolescente, cabe à Defensoria Pública acompanhar o cumprimento da medida socioeducativa aplicada, garantindo que suas finalidades sejam atingidas sem que qualquer direito que não tenha sido objeto de restrição na decisão seja afetado.
Cabe à Defensoria Pública, paralelamente a outras instituições, promover fiscalização dos Centros de Atendimento Socioeducativo para verificar o cumprimento das previsões do ECA, mormente em relação ao oferecimento de instalações físicas em condições adequadas de habitabilidade, higiene, salubridade e segurança; ao oferecimento de escolarização, profissionalização, atividades culturais, esportivas e de lazer e; ao enfrentamento à tortura.
Para além da fiscalização, entre outras ações, a Defensoria Pública pode triangular com outros atores do sistema para buscar melhorias na oferta de atividades educativas, cursos profissionalizantes, palestras motivacionais, etc. Por fim, mas lembrando que existem outras formas de atuação, a Defensoria Pública também trabalha na preservação dos vínculos familiares e na promoção da reintegração familiar, buscando meios de efetivar as visitas presenciais ou virtuais.
VGN – Como a Defensoria Pública atua para recuperar jovens cooptados por facções? Existe um trabalho neste sentido?
Fernando Soubhia – Estudos sobre a criminalidade organizada apontam que muito mais do que um meio para cometimento de crimes, essas facções acabam se tornando verdadeiras subculturas criminais onde o adolescente encontra espaço para expressar sua identidade e adquirir status entre os seus semelhantes mediante a prática de atos ilícitos. Assim, falar em ‘recuperar jovens cooptados’ me parece uma tarefa de profunda complexidade que exigeria uma abordagem interinstitucional e interdisciplinar.
O ideal é trabalhar para evitar que o adolescente seja cooptado. Assim, considerando que as facções criminosas se aproveitam de falhas estruturais do Estado para cooptar adolescentes, a Defensoria Pública envida esforços constantes para que os direitos estabelecidos na Constituição e no ECA sejam cumpridos, permitindo que o adolescente se desenvolva com acesso a oportunidades legítimas de educação, emprego e lazer. Esses esforços podem ser materializados em ações coletivas buscando a implementação de políticas públicas de educação, cultura, trabalho e lazer ou mesmo mediante a promoção de direitos humanos por meio de intervenções educativas nos bairros, nas escolas e espaços públicos.
Falando especificamente do adolescente em conflito com a lei, sabemos que as os Centros de Atendimento Socioeducativo são um dos ambientes preferidos pelas facções para fazer o recrutamento. Por isso, a Defensoria Pública, adotando os protocolos das Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude, atua com muito vigor para evitar internações desnecessárias, lutando para que apenas aqueles adolescentes que efetivamente representam um risco à sociedade fiquem recolhidos, impedindo que os demais tenham contato com as facções.
VGN – Como o senhor avalia as críticas à Defensoria Pública? Qual o perfil das pessoas que mais buscam pelo serviço?
Fernando Soubhia – Todo processo é estruturado com base na existência de dois polos: a acusação (em regra o Ministério Público), que representa o Estado e busca a aplicação de uma sanção diante de um suposto descumprimento de uma lei e, de outro lado, a defesa, que representa o acusado e busca a garantia de seus direitos. O Juiz ou Juíza, alheio às partes e sem qualquer interesse no processo, analisará as provas e decidirá se houve ou não violação da lei e qual é a sanção mais adequada, se esse for o caso.
Então, a função do Defensor ou Defensora Pública que atua na seara criminal ou infracional é lutar para que os direitos do seu assistido sejam respeitados: que ele só seja condenado se houver provas suficientes, que as provas sejam produzidas nos termos da lei, que a sanção aplicada esteja de acordo com as previsões normativas, etc. É importante se entenda que a defesa criminal não é uma defesa do crime, tampouco do criminoso. A defesa criminal é uma defesa de direitos.
VGN – Como avalia as críticas que comparam a garantia dos direitos da pessoa acusada a uma diminuição dos direitos da vítima?
Fernando Soubhia – Afirmar que a garantia dos direitos da pessoa acusada implica em uma diminuição dos direitos da vítima é uma grande bobagem. É perfeitamente possível que durante um processo os direitos do acusado sejam respeitados, ao mesmo tempo que se dá o devido acolhimento à vítima. Os direitos básicos de uma vítima são o de ser ouvida, respeitada, ter acesso à uma investigação séria e comprometida com a verdade e à atuação imparcial dos órgãos do sistema de justiça. Os direitos básicos de um acusado são o de não ser condenado sem provas suficientes e que as provas sejam produzidas nos termos da lei, garantida a sua participação no processo de produção. Percebe como esses direitos não são opostos?
Infelizmente, o discurso político nem sempre está conectado com a realidade jurídica ou mesmo com metas civilizatórias de longo prazo. Ainda assim, não há constrangimento algum em reconhecer que a sociedade como um todo se eleva quando os direitos individuais são respeitados. Por isso, continuaremos na defesa intransigente de direitos dos adolescentes em conflito com a lei, tal como determina a constituição federal.
VGN – Como funciona a atuação no Centro de Recuperação para menores. Segundo um deputado de Mato Grosso, a unidade “não recupera coisa alguma”. Como avalia esse tipo de opinião?
Fernando Soubhia – O ECA estabelece uma gama de medidas a serem aplicadas aos adolescentes em conflito com a lei, com a finalidade de promover a sua educação e não a punição. A internação, que equivale à prisão, é a mais gravosa delas e é reservada para os atos infracionais cometidos com violência ou grave ameaça e aos adolescentes que reiteram na prática de atos infracionais.
O sistema é falho por sua própria natureza. A ideia de se ressocializar pela segregação é contraintuitiva e comprovadamente ineficaz para atingir as finalidades declaradas, produzindo, ano após ano, a estigmatização, diminuição de oportunidades legítimas e adoção de carreiras criminosas, seja pelas facções, seja por carreira solo. Mas, ainda que admitamos que o sistema é construído com boas intenções, o que é questionável por si só, a falta de investimento nos poucos elementos destinados a efetivamente promover a reintegração dos jovens segregados aniquila qualquer possibilidade dele funcionar adequadamente.
Se as exigências da Constituição e do ECA fossem cumpridas, especialmente no que tange ao oferecimento de escolarização, profissionalização, atividades culturais, esportivas e de lazer, talvez houvesse uma chance para se falar em recuperação. Infelizmente, não é o que vemos. Na prática, apesar dos esforços das instituições do sistema de justiça e muitos integrantes do sistema socioeducativo, a estrutura material e de pessoal não é adequada para tornar realidade a promessa da lei.
Assim, o problema não parece ser que ‘o sistema não recupera’, mas sim que o sistema não é cumprido, de modo que não podemos dizer se ele funciona ou não. Estão colocando um eletrodoméstico 110 em uma tomada 220 e reclamando que ele não funciona … Enquanto os Centros de Atendimento Socioeducativo continuarem sendo vistos como meras ‘prisões para adolescentes’, o sistema será impedido de funcionar. Por isso, a solução, na minha opinião, está no investimento estatal para que os objetivos do ECA sejam cumpridos e, em especial, no investimento em políticas destinadas à criação de oportunidades reais aos adolescentes em situação de risco e aos adolescentes egressos do sistema.
VGN – Conforme pesquisa que aponta o mapa da desigualdade entre as Capitais, Cuiabá ocupa a 2ª colocação em homicídio juvenil (100 mil habitantes). As mortes envolvendo menores constantemente tem como explicação “trocas de tiros” com policiais durante ocorrências. A Defensoria Pública realiza algum tipo de atuação para evitar situações como essas?
Fernando Soubhia – Assim como já aconteceu em outras regiões do país, a escalada da violência armada parece possuir uma relação estreita com as chamadas guerras de facções. Isso, como dito, merece abordagem multidisciplinar e a atenção especial dos órgãos de segurança pública.
No que tange à suposta ‘troca de tiros’, a Defensoria Pública é uma árdua defensora do uso de câmeras corporais por membros das forças policiais. Essas ‘bodycams’ permitiriam avaliar com maior propriedade as mortes decorrentes de intervenção policial e, por outro lado, ampararia as afirmações das forças policiais no sentido de que a ação foi justificada.
De toda forma, a Defensoria Pública atua nesses casos em favor de quem buscar os seus serviços, seja dos familiares dos adolescentes mortos que buscam uma resposta do sistema de justiça, seja dos próprios policiais, caso venham a responder processos criminais, desde que se adequem aos parâmetros de atendimento.
VGN – Tivemos homicídios de motoristas de Uber, que gerou pânico na população, e na classe trabalhadora. Como a Defensoria atua nestes casos. Existe um acompanhamento de dois menores envolvidos no crime e se há uma continuidade após o período de reclusão?
Fernando Soubhia – A Defensoria Pública atua para garantir os direitos de seu assistido. Se a Defensoria Pública atua pelo adolescente em conflito com a lei, buscará garantir que ele só seja condenado se houver provas, que as provas sejam produzidas nos termos da lei e que eventual sanção seja aplicada dentro dos limites legais. Se atuar pela vítima ou seus familiares, buscará auxiliar nas investigações para comprovar a autoria do delito e, se isso for de interesse dessa vítima ou familiares, buscará uma indenização ou alguma forma de proteção contra novas infrações.
Não tenho informações sobre esse caso específico, mas se a família procurou a Defensoria Pública, os adolescentes terão assessoria jurídica do órgão.
VGN – Como recebe as críticas ao trabalho da Defenderia Pública, especialmente quando precisa garantir os direitos das crianças e dos adolescentes
Fernando Soubhia – Todo servidor público deve ser receptivo a críticas ao seu trabalho, afinal, somos pagos com dinheiro público. Se a crítica é construtiva, a levamos em consideração e buscamos melhorar nosso serviço para promover uma defesa cada vez mais qualificada dos direitos dos vulneráveis de nosso estado.
A crítica pela atuação em defesa dos direitos de adolescentes em conflito com a lei, por outro lado, não é uma crítica de verdade. Não temos qualquer constrangimento em cumprir nosso dever. Todos têm direitos e o fato desses direitos serem de todos, sem exceção, é exatamente o motivo pelo qual sua defesa intransigente é tão importante.
VGN – Quais melhorias ainda é preciso para garantir o trabalho do defensor público?
Fernando Soubhia – Precisamos de mais Defensores e Defensoras Públicas para uma atuação cada vez mais especializada. Precisamos de servidores capacitados para prestar um serviço multidisciplinar à população vulnerável.
VGN – Como o senhor desempenha seu trabalho. O senhor avalia se ainda é preciso fazer um trabalho mais próximo ao público alvo. Qual a sua sugestão?
Fernando Soubhia – O dia a dia demanda a presença no gabinete, até mesmo para dar conta do altíssimo volume de processos que chega diariamente. No entanto, o trabalho do Defensor e da Defensora Pública é estar onde o assistido está. Por isso temos intervenções com a população ribeirinha, nas ruas, nos bairros, nas escolas, nos lixões, nas cadeias, nos Centros de Atendimento Socioeducativo …